A bússola do coração: como a obra do neurologista Oliver Sacks pode embaralhar a percepção sobre os sentidos
Abrir os olhos para sensações que nos visitaram no passado – quando ainda não
sabíamos nomeá-las, mas já
éramos incapazes de ignorá-las – é uma oportunidade de reconectar-nos a sentimentos
que permanecem em nós, apesar da célere passagem dos anos.
Para alguns, era um lugar empoeirado, de odor forte e até sufocante, com livros amontoados pelos cantos, sem muito cuidado. Para ela, era um ambiente mágico, que lhe permitia vivenciar narrativas singulares retratadas em páginas carcomidas pela ação inclemente do tempo. Eram sensações tão prazerosas que ela tentava esticar as horas, permitindo-se ficar ali sem pressa.
Seus olhos inquietos perscrutavam as estantes do local quando se detiveram num título conhecido, contudo, esquecido na memória. Tratava-se de Um Antropólogo em Marte, de autoria do neurologista britânico Oliver Sacks.
Escrita em 1995, a obra relata casos verídicos de pessoas com condições neurológicas de difícil compreensão. Em um dos ensaios, intitulado “To See and Not See” — em livre tradução, Ver e Não Ver - Um retorno à visão após a cegueira —, o doutor Sacks narra a experiência de um homem cego, que, após uma cirurgia, recupera a visão, mas enfrenta dificuldades para interpretar as imagens captadas por seus olhos. É como se seu cérebro apenas reconhecesse a forma das coisas pelo toque, contudo, ao vê-las, não pudesse identificá-las, pois lhe faltava uma memória visual.
Com o exemplar do livro nas mãos, memórias antigas vieram à mente da mulher, como para fazê-la refletir sobre temas relevantes que sempre estiveram presentes nela, apenas esperando uma oportunidade para as sinapses acontecerem.
Então, ela foi transportada para uma tarde qualquer, quando assistiu ao filme À primeira vista (At First Sight, roteiro de Oliver Sacks, dirigido por Irwin Winkler, Estados Unidos, 1999), inspirado no livro que encontrara acidentalmente. Com doses de romantismo tão característico das obras do cinema norte-americano, o longa-metragem é um mergulho no cotidiano de Virgil, um homem com deficiência visual, que trabalha como massoterapeuta em um spa. Ao atender Amy, uma talentosa arquiteta, Virgil, por meio do toque, desperta nela emoções há muito represadas pelo medo de sofrer novamente.
Uma das cenas mais sensíveis acontece quando Virgil e Amy correm para um antigo galpão para se abrigarem da chuva. Acostumada a ver o mundo pelas imagens captadas por sua visão, a moça sente sua percepção se abrir para um universo novo quando Virgil, utilizando-se da audição e do olfato aguçados, descreve a beleza da chuva caindo sobre o telhado e deslizando pelas calhas; o som do pingo ecoando ao chocar-se com a poça recém-formada.
Não são incríveis as sensações que nos invadem quando fechamos os olhos ao beijarmos alguém ou quando nos lembramos de momentos que nossa alma abriga com ternura? Quantas lembranças são quase palpáveis ao usarmos outros sentidos... As emoções vêm à flor da pele.
Vivemos num mundo em que somos levados a calar nossas emoções. Caminhamos apressados, sem, de fato, enxergar as pessoas ao redor. Em uma cena, Virgil não compreende como Amy é capaz de passar por um pedinte sem lhe dirigir sequer um olhar. Ao perguntar o motivo, ele fica ainda mais confuso, pois, lamentavelmente, os diferentes olhares dela eram vazios de significado para o universo ainda tão tátil dele. E, assim, os dois se perdiam em silêncios incômodos, dolorosos.
A experiência de Virgil nos lembra que a percepção do mundo não se limita ao que é captado pelos olhos. Sensibilidade não é um privilégio da visão, mas uma construção que envolve todos os sentidos e, sobretudo, a forma como nos conectamos com o outro e com nós mesmos, atuando como uma espécie de bússola do coração.
O filme nos permite refletir sobre como, muitas vezes, vemos as coisas sem enxergá-las de fato, passando incautos por sentimentos, histórias e pessoas que nos cercam. Enquanto Virgil busca interpretar um mundo visual, Amy descobre novas maneiras de sentir, ouvir e perceber. E, assim, ambos são desafiados a compreender, além das ilusões óticas, a verdade, que reside na empatia, na escuta e no sentir profundo. No fim das contas, o que realmente tem valor é a forma como escolhemos enxergar o mundo.
Como se despertasse, a mulher piscou algumas vezes e, com cuidado, pôs o livro na estante, bem à vista, como um convite, que iniciava no olhar, mas prometia sensações que transcendiam os cinco sentidos.
| Tânia Lins é bacharel em Administração de Empresas, licenciada em Letras e pós-graduada em Língua Portuguesa e Comunicação Empresarial e Institucional. Atua há mais de quinze anos no mercado editorial, com experiência profissional e acadêmica voltada à edição, preparação e revisão de obras, gerenciamento de produção editorial, leitura crítica e análise literária. Atualmente, é coordenadora editorial na Editora Vida & Consciência.
Créditos: Betania Lins
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